sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Roberto de Mattei ,Considerações sobre o ato de renúncia de Bento XVI

Roberto de Mattei
Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado.
O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com a sensação de perda”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Angelo Sodano.
Se foi tão grande a perda dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades da Igreja no momento presente.
No entanto, a possibilidade da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a ideia da “renúncia” de João Paulo II, quando a sua saúde havia se deteriorado.
O cardeal Ratzinger, no seu livro-entrevista Luz do Mundo, de 2010, disse ao jornalista alemão Peter Seewald que se um Papa percebe que não é mais capaz, “fisicamente, psicologicamente e espiritualmente, de desempenhar os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”.
Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta do teólogo suíço Hans Küng aos bispos de todo o mundo, com estas palavras: “Acreditamos que o pontificado de Bento XVI pode ter-se exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar sua demissão ao cargo”.
E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci escreveram sobre a possível renúncia do Papa, esta hipótese havia despertado entre os leitores mais desaprovação que consenso.
Não existe dúvida sobre o direito de um Papa a renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer de o Romano Pontífice renunciar a seu cargo, requere-se para a validade que a renúncia seja feita livremente e seja manifestada ritualmente, portanto, que não seja aceita de qualquer um”.
Nos artigos 1 º e 3 º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista de resto a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.
Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito em Perugia no dia 5 de julho e coroado em L’Aquila no dia 29 de agosto de 1294.
Após um reinado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Em seguida, preparou a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando uma Constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave.
A 13 de dezembro daquele mesmo ano, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia papal e das roupas, e tomou o hábito de eremita. No dia 24 de dezembro de 1294, por sua vez, foi eleito Papa Benedetto Caetani com o nome de Bonifácio VIII.
Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), o Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma Ocidental (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta para dar a conhecer sua intenção de se retirar do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas pela assembleia sinodal em 4 de julho de 1415, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII.
Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal-bispo do Porto e com o primeiro posto após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província de Marche e morreu em Recanati em 18 de outubro 1417.
Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto considerado um “escritório jurisdicional da Igreja”, não indelevelmente ligado à pessoa que o ocupa.
A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (ver, por exemplo, São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q 39, a 3, resp., III, q 6-2).
Ambos os poderes são destinados a realizar os objetivos peculiares da Igreja, mas cada um com suas características próprias, que o distinguem profundamente do outro: o potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; o potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
O poder da ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a sagração, isto é, por meio de um sacramento e com a impressão de um caráter sagrado. A posse da potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter em quem é concedido.
De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, é para sempre e nenhuma autoridade humana pode excluir essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é permanente, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
Outra característica importante do poder da ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de cada circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício.
As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação de espaço.
Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, está apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele está todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.
A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja no sentido sacramental e carismático que opõe o poder da ordem ao poder de jurisdição, a igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica.
O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerce apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e jurisdição.
Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário”, e não vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da novidade contínua de seus problemas.
“Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e mental”, disse Küng à emissora Südwestundfunk, que vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja.
O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente de arbitragem, ladeada por uma estrutura eclesiástica "aberta", qual sínodo permanente, com poder de decisão.
No entanto, caso se acredite que a essência do Papado esteja no poder sacramental da ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que é indelével como a ordenação sacramental da qual deflui.
Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que o Papa deriva sua summa potestas da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura estabelecer o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se sua posição se basear sobre o poder de jurisdição.
Pela mesma razão não pode haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “aposentado”, como tem sido impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.
O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor, por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002:
"Segundo a grande tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica há uma disposição que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Papa ao atingirem 75 anos, e é verdade que todos os bispos recebem com obediência esse convite e apresentam-na, como também é verdade que normalmente elas são aceitas e as renúncias acolhidas. Mas esta é uma regra e uma prática recente, definida por Paulo VI e confirmada pelo Papa João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesadas as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação”.
A norma pela qual os bispos renunciam sua diocese a partir dos 75 anos de idade é uma fase recente na história da Igreja e parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado ad convivendum et commoriendum (2 Cor 7, 3), para viver e morrer ao lado de seu rebanho.
A vocação de um Pastor, como a de todos os batizados, vincula de fato não somente até certa idade e boa saúde, mas até a sua morte.
A este respeito, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em ruptura absoluta com a tradição e a prática da Igreja.
Do ponto de vista do que poderiam ser suas consequências, trata-se de um ato não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro.
A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, é de fato despojada de sua santidade para ser consignada aos critérios de julgamento da modernidade.
Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.
Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem por sua vez se viu forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente.
Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a norma:
No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é também necessário o vigor, seja do corpo, seja da alma, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal, que devo reconhecer a minha incapacidade”.
Não se defrontava com uma deficiência grave, como foi o caso de João Paulo II no final de seu pontificado.
As faculdades intelectuais de Bento XVI estão totalmente intactas, como o demonstrou uma de suas últimas e mais importantes meditações para o Seminário Romano, e sua saúde é “geralmente boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual o Papa alertou nos últimos tempos para “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.
No entanto, desde o momento da eleição, cada pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, sentindo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado.
Quem pode afirmar-se capaz de suportar com suas próprias forças o munus de Vigário de Cristo?
Mas o Espírito Santo assiste o Papa não apenas no momento da eleição, mas até a sua morte, em cada momento, até nos mais difíceis de seu pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspira cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio.
Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.
Mas a questão é: em dois mil anos de história, quantos foram os Papas que reinaram com boa saúde, que não experimentaram o declínio da força nem sofreram com doenças e provas morais de qualquer gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI?
Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e se não o fizer elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento XVI será inevitavelmente orientada para um jovem cardeal em pleno vigor, que seja considerado adequado para a grave missão que o espera.
A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se refere o Papa, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.
Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja.

Depois dessa data, Bento XVI ainda poderá ser protagonista de cenários novos e inesperados. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado.
O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, a barca de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente se avizinham?